Poluição. Armas químicas. Transgênicos.
Dispositivos híbridos de comunicação multirrede. Organismos geneticamente
modificados. Bebê de proveta. Nossa sociabilidade transformada pela tecnologia,
interferindo na nossa vida diariamente. As invenções científicas transformadas
por nós cotidianamente. Tudo misturado a ponto de meu próprio eu ser
reinventado no ciberespaço. Ou seria o ciberespaço transformado pela nossa
apropriação?
As coisas se proliferam como bebês, todas
híbridas. E a senhora modernidade criou um mundo que nem ela própria é capaz de
dar conta de explicar. Ou talvez nunca tenha sido capaz, já que se considerou,
ingenuamente, tão invencível a ponto de querer dividir o científico e o social,
em um processo de purificação, como se os dois fossem incomensuráveis. Como se
a ciência não fosse construída por humanos e a sociedade não usufruísse e se
apropriasse da ciência, transformando-a sempre. Como se a política não
interferisse no modo de construir da ciência e como se ela também não existisse
em um cenário marcado por relações de poder e disputas de interesses. Será que
algum dia fomos modernos?
A ciência nunca foi neutra. A vida humana nunca foi algo
totalmente purificado, unívoco, nem no nível macrossocial, no nível micro, nem
no âmbito do pessoal. Não há o mundo das coisas em si de um lado e o mundo dos
homens de outro, porque a natureza e a sociedade são efeitos de redes
heterogêneas. Sempre existimos em nós, conectados em redes.
A história nunca foi linear, como propôs a modernidade. Nem
tampouco uma revolução nunca superou o passado como se este fosse algo
ultrapassado, menor. Será que realmente a época moderna chegou com um futuro de
progresso e a idade média seria mesmo uma idade das trevas como os pensadores
modernos quiseram denominar? Não, neste sentido, jamais fomos modernos.
Passado, presente, futuro participam sendo o mistério do planeta. Todos
misturados, porque talvez eles nunca tivessem existido de maneira separada.
Escrevo neste blog na contemporaneidade. Nesta
cibercultura, é possível criar e contar as histórias que quiser, transformar
minha realidade cotidiana em algo extraordinário através da literatura na web.
Posso criar desde um personagem virtual medieval até um perfil de rockstar. Eu
passaria, então, a ser um híbrido nesta televivência? Ou será que sempre fomos
híbridos, apesar de os modernos quererem nos colocar a ideia de uma
racionalidade humana?
Quantas vezes nos perguntamos se temos mesmo de
ser um só, com uma identidade racional e linear? Quantas vezes nos perguntamos
se a modernidade, com sua noção de racionalidade e de progresso, faz de fato
sentido se, junto com este tal progresso, vem, por exemplo, armas químicas,
bombas, poluição, mortes de peixes por intoxicação? O filme “L'Âge de
Ténèbres”, do cineasta canadense Denys Arcand, faz uma crítica à modernidade
neste sentido, quando nos traz o questionamento de que progresso é este em que
nossa vida na contemporaneidade é marcada por poluição, engarrafamento,
distância entre pessoas, isto é, que não consegue dar conta dos próprios
problemas que criou.
Como subterfúgio para todas estas questões que
exercem pressão sobre ele, o protagonista do filme Jean-Marc LeBlanc passa,
durante toda a narrativa, dividindo-se entre seu universo real de funcionário
público do órgão de seguridade social do estado, em uma vida nada confortável,
e seu universo de imaginação em que inventa histórias sobre si mesmo para
tornar sua vida menos chata e suportável (pergunta chave do filme: será mesmo
esta vida que queremos?).
Assim, como neste blog em que é possível
misturar realidade com ficção, criar o personagem que se quiser em ambiente
virtual, no filme de Denys Arcand, Jean-Marc LeBlanc cria seu universo
paralelo, em que se imagina vivendo em realidades bem mais divertidas do que a
que ele se encontra de fato. E quem pode dizer que, para ele, subjetivamente
aquilo não é real? O que seria o real e a fantasia? Porque a imaginação e as
emoções devem ser separadas da realidade, que deve estar sempre na ordem do
racional? A senhora modernidade gosta de separar estas coisas em prol do
desenvolvimento, do progresso, mas na contemporaneidade, com a proliferação dos
híbridos, já foge ao controle a tentativa de separação, de “purificação”, o que
na verdade, de fato, nunca aconteceu porque tudo sempre existiu misturado
mesmo, em redes.
O final de “L'Âge de Ténèbres” sugere que o
personagem principal resolve mudar sua vida, se despedindo de seu mundo da
imaginação, saindo do seu emprego público, separando-se da esposa, cujo
casamento já estava em crise, e optando por uma vida em uma casa de frente para
o mar. A saída para o personagem é interessante, mas apenas me questiono se é
necessária realmente a despedida do personagem em relação a seu universo de
imaginação. Será que o seu mundo imaginário já não fazia parte dele enquanto
sujeito e poderia ser mantido? A imaginação é um dos temperos da vida. Por que,
para lidarmos com nossa existência, temos que separar o universo das emoções e
da imaginação e o universo da razão se as pessoas não funcionam assim, de fato?